Solenidade de Corpus Christi — Ano C
Saciou de bens os famintos
“Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes,
elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os
e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão”. (Lc 9,16)
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
Celebramos o “Corpo de Cristo”, uma das celebrações mais ricas que nos faz pensar em seu conteúdo e simbolismo… Mas, como celebrar este “Corpo de Cristo” no meio de tantos outros corpos dilacerados, explorados, odiados, famintos…?
Temos muito o que pensar e rezar diante dos corpos, tanto diante do Corpo de Cristo, como diante dos corpos que passam fome, que são explorados, que sofrem… Não esqueçamos isto: Corpo de Cristo… comunhão, outro, fome, pão… partilha… celebração, amor, corpos…
Jesus Cristo nos fascina por ter a coragem de ser diferente em sua época, por ser Ele mesmo e estar profundamente integrado com seu corpo, colocando-o a serviço e crescimento do outro… do outro corpo.
Jesus, na vivência de sua corporalidade, destravou e dignificou os corpos dos outros: diante dos corpos doentes… curou; diante do corpo pecador… amou, perdoou, abençoou, encorajou; diante dos corpos esfomeados: alimentou, multiplicou os pães; diante do corpo sem vida: “ jovem, levanta-te!” vida nova; diante dos corpos que exploram/roubam: protestou, rejeitou, não façam da casa de meu Pai um covil de ladrões; ai de vós, fariseus hipócritas, que se preocupam demais com as aparências dos “corpos”… e não veem o interior.
Os Evangelhos nos recordam que foi no gesto do partir e repartir o pão que Jesus deixou transparecer o verdadeiro sentido do seu Corpo: vida que se doa para aliviar todo “sofrimento humano” (curas), para proporcionar a “refeição partilhada” (ceias e multiplicação dos pães) e para ativar “novas relações humanas” (sermão da montanha).
Contemplar as cenas evangélicas é atualizar em nós estas três preocupações centrais da vida de Jesus. Aqui se conecta a essência de Sua vida com a nossa vida de seguidores(as).
Para Ele, no banquete da vida não basta dar e receber generosamente, mas acolher com gratuidade todo aquele que não pode oferecer nada em troca. A honra não se fundamenta mais no poder e no prestígio, mas na bondade, humildade e hospitalidade. A nova comunidade do Reino é esse banquete no qual todos tem lugar, seja qual for sua origem, crença, situação pessoal; ali todos se sentem convidados, sem merecimentos exclusivos nem dignidades adquiridas.
A “mística da mesa” não só nos recorda o modo original de Jesus agir, senão que é um chamado à comunidade cristã para que seja comunidade inclusiva e aberta, onde as diferenças são respeitadas, os espaços de igualdade são construídos, onde o Deus gratuito e cheio de amor e perdão é proclamado. Nela não haverá estrangeiros nem imigrantes, não haverá primeiros nem últimos, não haverá resquícios de gênero nem poderes que excluem.
Se não nos assentamos à mesa com o outro, estamos perdendo a possibilidade de saborear os alimentos humanizadores: encontro, alegria, partilha, hospitalidade, festa, vida… Tudo aquilo que acontece na alegria, tudo aquilo que é distribuído com vida, com sentido e sentimento, alimenta algo em nós, ou alguém fora de nós. Multiplica-se, triplica-se os cestos de pão.
Na mesa e na partilha do pão “cristificamos” e “sacralizamos” os frutos da terra e do trabalho humano. Por isso, os alimentos fornecidos pela natureza e dela extraídos pelo trabalho do ser humano, vêm carregados de tão rico simbolismo: quando postos à mesa significam a mãe natureza dadivosa e boa, criada por Deus e o trabalho do ser humano, que na mesa vem se alimentar para continuar a viver.
A relação de alteridade à mesa tem o poder de reconstruir laços quebrados, perdidos em nosso passado (mesa, lugar da memória); ela tem a força de reavivar os sentimentos soterrados pelos afazeres diários. A presença provocante do encontro com o outro, desperta em nós o “dinamismo conspiratório”, ou seja, respiramos juntos o mesmo ar, compartilhamos o mesmo sonho, a mesma missão…Um caminho “mistagógico”, que é pura acolhida do Mistério revelado na mística da mesa.
Esse caminho é busca, encontro e acolhida.
Jesus, durante sua vida pública, desencadeou um “movimento de vida” e vida em plenitude. E este “movimento humanizador” se visibilizou, sobretudo, junto às mesas da refeição e na partilha do pão.
Jesus entendia e celebrava as refeições como sinal da presença do Deus Pai providente, que alimenta e cuida de todos os seus filhos e filhas; mas deviam ser refeições abertas aos pobres, sem distinções de pureza-impureza. Jesus comia e bebia em meio a um mundo injusto, para iniciar um caminho de revelação do Deus do Reino, partilhando o pão e o vinho com os necessitados, na alegria e na solidariedade.
Por isso, sua religião não era a do jejum, mas celebração de bodas e comunhão de mesa (refeição compartilhada). Fariseus e batistas antigos (e muitos cristãos de hoje) entendiam o jejum como rito de mortificação, uma renúncia centrada em si mesmo e esvaziada de qualquer relação com os outros. Jejuar por sacrifício para assim ter “méritos” diante de Deus. No seu horizonte, o outro não está presente; jejum autocentrado é tortura inútil.
No relato da “multiplicação dos pães”, segundo o evangelista Lucas, a cena acontece em um “lugar deserto”, afastado da vida cotidiana organizada segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império. Sair do centro, ou ser deslocado do centro, pode ser uma vantagem à hora de perceber o que Deus realiza em nossas situações concretas.
Jesus é ponto de confluência de todas aquelas fomes, dispersões e diferenças. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo grandes injustiças e muita pobreza.
De alguma maneira, este “fora” evoca a saída do povo judeu do Egito ao deserto, onde se encontrou com Deus numa experiência que o fará passar de multidão dispersa de escravos a um povo unido e livre.
O povo tomou distância com relação ao seu mundo rotineiro e agora se encontra com Jesus, que encarna a novidade de Deus ao alcance da mão. Também pode ser o “fora” de todos os excluídos da história que se encontram com Jesus, tornando realidade o sonho do Reino: o mundo da igualdade e da comunhão.
Longe do templo e das autoridades judaicas, seguido por uma multidão, Jesus sinaliza para uma Páscoa centrada na pessoa dele, aberta a um processo de partilha, comunhão e retorno de vida abundante para todos. O congraçamento de Israel, durante a festa da Páscoa, no Templo, é substituído pelo congraçamento em torno a Jesus, no lugar onde Ele estiver, com a multidão que o segue.
Enquanto a Páscoa no Templo favorecia os controladores dele, a Páscoa em torno a Jesus favorece e engrandece a todos. Também a centralidade do pão é trocada pela centralidade do próprio Jesus.
Ele dá graças por cinco pães e dois peixinhos diante de cinco mil pessoas famintas. É a gratidão sobre o pouco que faz o muito. É pouco, mas é dom de Deus, e o dom pode-se multiplicar, pois a graça partilhada tem alcance ilimitado.
Na Páscoa do Êxodo, as pessoas comeram às pressas, em pé, pães sem fermento, cordeiro assado e ervas amargas, cingidas, para viajar imediatamente (Ex. 12,8-11). Na nova Páscoa, elas comem organizadas em grupos, sentadas na relva, tranquilamente, sem pressa, pães e peixes, o tanto quanto necessitam para ficarem saciadas, e ainda sobra abundantemente, para o futuro.
A abundância de alimento é graça de Deus, mas é igualmente empenho de cada pessoa e de todas juntas.
A partilha acontece quando há corresponsabilidade efetivamente solidária que leva a colocar, em comum, tudo o que cada um tem. Mas não termina aí: a Páscoa do pão sinaliza para a Páscoa da vida que se faz pão e do pão que permanece sempre.
Texto bíblico: Lc 9,11-17
Na oração: Qual é o pão que você busca?
— Como e de que maneira você se torna “pão” para os demais? O pão que você oferece aos outros alimenta o desejo de construir o Reino ou é somente um “pão que engorda e deixa acomodado”?
— Quem é “pão” para você, que alimenta e desperta o impulso para servir os outros?
— Quais são os “cinco pães e dois peixes” que você pode disponibilizar para alimentar a tantos?
— Sua participação na eucaristia implica passagem do “partir do pão” para o ser “pão partido e partilhado”?
lustração da capa: IAS Agência (Liturgia Diária da Paulus, junho’2025 – p.61)