Felicidade: fome e sede de plenitude

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Pe. Adroaldo Palaoro, SJ

“Felizes os pobres em espírito, os mansos, os pacíficos, os misericordiosos, os puros de coração…” (Mt 5,1-12)

4º Domingo do Tempo Comum — Ano A

Todo ser humano anseia por felicidade; como filhos e filhas do “Sopro criativo”, somos habitados por uma “fome e sede” de eternidade, de infinita liberdade, de vida plena… Muitas são as pistas sobre o lugar onde se encontra a “chave da felicidade”. Alguns o situam na arte; outros, numa religião fundamentalista; muitos, num consumo desordenado; vários, na política alienada; tantos, no sucesso a todo custo; poucos, na militância comprometida; inúmeros, no trabalho estressante; raros, no serviço desinteressado…

A sociedade de consumo que tudo invade, realça a felicidade como a meta imediata de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos. Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja… e de novo empreendemos nossa busca. A felicidade não se encontra na saída e nem no final. Parodiando Guimarães Rosa, podemos dizer que ela está presente na travessia. Nesse sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de espírito”; é experimentar uma sensação de renascimento contínuo, de satisfação interior… ou sentir despertar em si um potencial de bondade, muitas vezes desconhecida…

A felicidade não vem a nós a partir de fora, nem nos espera no futuro; tampouco se encontra em “algo” que deveríamos alcançar. A felicidade se identifica com o que somos; é outro nome de nossa identidade profunda e transcende toda circunstância e acontecimentos. Muitas vezes somos ignorantes de nosso estado de felicidade; na essência, já somos felicidade. O problema é que nos identificamos com o que não somos e, nessa mesma medida, nos afastamos da felicidade quando a localizamos em “algo” ou a projetamos “fora”. Mas a felicidade não é um “estado de ânimo” que pode variar, mas um “estado de ser”, que nasce justamente da experiência profunda de nossa vida e que é capaz de abraçar todos os estados de ânimo. A verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir a cada dia que a vida se inicia novamente a cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma grande aventura… As bem-aventuranças, pronunciadas por Jesus sobre um monte, tem o caráter de uma teofania e constituem umas das páginas mais belas da sabedoria universal. Falam de uma felicidade diferente que abre caminho em meio às adversidades e contradições. Cada frase é uma passagem, uma páscoa, onde chega ao auge o que parece contraditório: bem-aventurados são os que sofrem, os pobres, os persegui-dos, os humildes, os que choram… pois demonstram que eles ainda não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por isso, são, verdadeiramente, os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um novo mundo.

Tanto as bem-aventuranças como o Reino são “transconfessionais”. São atitudes que aproximam todos os seres humanos. Seu caráter universal é o que faz com que muitas vezes sejam lidas em encontros inter-religiosos. Elas nos convocam a ir além de nossos pequenos e atrofiados lugares, em direção a uma terra prometida da qual já falavam os profetas de Israel.

Para surpresa de todos, Jesus subiu a uma montanha para ver o amplo horizonte da vida e lá fez um profundo mergulho em seu interior, estimulando também os discípulos e a multidão a descerem no insondável mundo do “eu profundo”. É ali que se encontra a fonte das inspiradas “beatitudes”, aquelas que tecem nossa vida e nos fazem originais. Não há outro modo de alcançar o divino a não ser “escavar” e fazer emergir aquilo que é mais nobre e humano, escondido nas profundezas da vida. Para ativar as bem-aventuras é preciso perfurar a dura casca do ego inflado e prepotente.

Nas afirmações surpreendentes de Jesus, são chamados de bem-aventurados ou felizes aqueles que vivem em sentido contrário ao que o mundo propõe: pobreza, mansidão, paz, compaixão, sensibilidade solidária. A felicidade evangélica não é como aquela que o mundo vende, ou seja, euforia fácil e prazer imediato. Ela é muito mais um chamado à plenitude e sabe suportar os embates que a vida apresenta. Com frequência, associamos a felicidade à ausência de problemas, ao êxito econômico, à beleza perene ou ao prazer em todas as suas dimensões. No entanto, tudo isso esgota ou é simplesmente insustentável, pois não tem consistência interior.

Não podemos considerar as bem-aventuranças como leis ou como algo a cumprir. Elas são o horizonte, a meta, o tesouro a descobrir. Devemos nos aproximar de cada uma delas como “atributos divinos” presentes em nosso interior e no interior de todas as pessoas. Elas são como estradas através das quais avançamos até viver na “dinâmica do Reino”, que tantas vezes encontra resistência frente a outras dinâmicas egóicas e formas de viver auto-centradas que nós mesmos alimentamos.

— Ao escutar e acolher que somos felizes quando somos “pobres de espírito”, significa ter alcançado a liberdade interior, ser conscientes de onde colocamos a segurança de nossa vida. Mas também implica viver uma existência simples e despojada, sentindo-nos chamados a partilhar os dons e a nossa própria vida com os mais necessitados.
— Quando Jesus proclama que devemos ser “mansos, para possuir a terra” percebemos a radical diferença frente ao orgulho e prepotência cultivados pela nossa sociedade. A mansidão é fruto do Espírito, próprio de quem deposita toda sua confiança em Deus. Se vivemos tensos, agressivos diante dos outros, acabamos cansados e esgotados. Mas, quando olhamos nossos limites e fragilidades com ternura e mansidão, sem nos sentir superiores ou inferiores a ninguém, podemos viver mais integrados, evitando desgastar energias em lamentos ou dissimulações inúteis.
— Ao escutar que somos felizes quando “sabemos chorar com os outros”, significa compartilhar o sofrimento alheio e enfrentar as situações dolorosas, solidarizando-nos com o sofrimento do mundo para transformá-lo.
— E continuamos escutando que somos felizes, bem-aventurados, quando sentimos “fome e sede de justiça”, ou seja, quando emerge de nosso interior um impulso mobilizador para que a vida digna seja possível para todos e sentimos isso como se sente a fome, a partir das entranhas.
— Quando somos “misericordiosos”, significa que deixamos fluir de nosso coração o amor recebido de Deus, significa que estamos acolhendo os outros incondicionalmente, assim como nos sentimos acolhidos por eles.
— Ao nos descobrir que somos felizes quando temos “um coração limpo para poder ver a Deus”, significa ter um coração simples, sem falsidade, autêntico, transparente.
— E nos admiramos, nestes tempos tão sombrios, ao escutar que somos felizes quando “trabalhamos pela paz” sem excluir ninguém; construímos paz quando buscamos o consenso, a harmonia, o perdão, a possibilidade de vida para todos.
— Mais ainda, no final nos é dito que somos felizes quando nos sentimos “perseguidos por causa da justiça”, porque o Reino de Deus pede uma sociedade justa e em paz e isto não é possível sem uma grande dose de entrega pessoal para contrapor todos os obstáculos que nascem dos interesses pessoais e dos egoísmos grupais, retardando a plenitude do Reino.

Texto bíblico: Mt 5,1-11

Na Oração: “Contemplar” o significado de cada bem-aventurança; verificar em que medida e em que circunstância ela se faz visível em sua vida.

Ilustração: 4º Domingo do Tempo Comum, Stefano Pachi (Liturgia Diária – Paulus – jan.2023, p. 104)

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