Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
“Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita” (Lc 13,24)
Segundo o relato de Lucas, um desconhecido interrompe o caminho de Jesus e lhe faz uma pergunta, tão frequente naquela sociedade religiosa: “Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?”
Tal pergunta, no fundo, é uma ofensa ao amor de Deus e, por detrás dela, já percebemos uma falsa imagem d’Ele, como se Deus fosse aquele que põe travas à salvação e não quer que este dom chegue a todos.
Por isso, Jesus não responde diretamente à pergunta. O importante não é saber quantos se salvarão; não lhe interessa especular sobre este tipo de questões estéreis, mas vai diretamente ao essencial e decisivo: viver com atitude lúcida e responsável para acolher a salvação do Deus que é suma bondade e quer que todos se salvem. Quem está disperso e distraído não está em sintonia com o dom da salvação, perde a oportunidade de acolhê-la e deixar-se inspirar por ela. Por isso, Jesus insiste: “Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita”.
Para entender corretamente o apelo a “entrar pela porta estreita”, é preciso recordar as palavras de Jesus encontradas no evangelho de João: “Eu sou a porta; quem entrar por mim será salvo” (10,9). Entrar pela “porta estreita” é fazer caminho com Jesus, aprender a viver como Ele, revestir-se do modo de ser e de viver d’Ele… O que Jesus pede não é rigorismo legalista, mas amor radical a Deus e aos outros.
Por isso, seu chamado é fonte de exigência e não de angústia. Jesus é uma porta sempre aberta, para que, ao passar por ela, vivamos em plenitude. Ninguém pode fechá-la; só não conseguimos atravessá-la quando nos fechamos em nosso legalismo e moralismo.
Ao longo da história da espiritualidade cristã esta frase – “esforçai-vos por entrar pela porta estreita” – foi entendida como “sacrifício”, “mortificação”, “renúncia”… Uma leitura mais serena destas palavras, no entanto, nos faz ver que não se pode confundir “porta estreita” com “conquista de méritos e recompensas”, inflando um “ego religioso e perfeccionista”.
Não conhecemos nenhum mestre espiritual que tenha dito que a porta que conduz à Vida seja cômoda ou ampla. Espaçosa e plena é a própria Vida, mas a porta é estreita. A rigor, é tão estreita, que só pode ultrapassá-la quem está disposto a esvaziar sua pequena identidade egóica.
Sabemos que, um “ego inflado”, compulsivo, cheio de si, obeso…não tem como passar pela “porta estreita”. Para entrar por ela é preciso despojar-se de tudo aquilo que foi sendo acumulado ao longo da vida: posses, honras, consumismo, vaidades, poder, prestígio… “Entrar pela porta estreita” é desapropriação do ego, é desinflar-se, deixar transparecer a verdadeira identidade do próprio ser.
Para fazer o caminho com Jesus não se pode ter excesso de gorduras nas ideias, no coração, nas atitudes… Ser peregrino com Ele supõe leveza, flexibilidade, mobilidade…
As portas do Reino estão sempre abertas; e estão abertas para todos. Mas, muitos “egos” vivem cheios de si mesmos e ocupam todo o espaço da entrada da porta. Eles não entram, porque estão bloqueando a porta, mas também não deixam entrar aqueles que querem passar por ela.
Os “egos inflados” acreditam estar dentro, quando na realidade estão fora; acreditam ser donos da porta; não se atrevem a entrar por medo à verdade e preferem ter um pé dentro e outro fora.
Numa perspectiva psicológica, conhecemos a imagem da porta nos nossos sonhos. Quando sonhamos com uma porta trancada, isso significa que perdemos o contato com nosso interior, com nosso coração, com nossa essência e vivemos apenas na exterioridade.
No evangelho deste domingo, as pessoas que o dono da casa afirma não conhecer, vivem apenas na superfície de si mesmas. Elas não têm uma vida ruim, mas tudo o que fazem acontece apenas no mundo exterior e não tem nenhuma relação com seu coração. Até mesmo sua fé é meramente exterior. Elas vão à Igreja, são rígidas com as leis morais e cumprem com os deveres religiosos. Mas ao fazer isso não entram em contato com seu coração. Elas até se lembram que seguem Jesus, dizem ter comido e bebido com ele e ter ouvido seu ensinamento. Mas seu coração está fechado. A proposta de vida plena, apresentada por Jesus, não desperta ressonância no “eu profundo” delas.
O dono da casa ao dizer –“não sei quem sois” – simplesmente está afirmando que tais pessoas não se parecem em nada com Ele.
A dureza destas palavras ressoa como um chamado realista a nos despertar para reconhecer-nos na Vida. Quem não entra em contato com sua dimensão mais profunda, não participa da vida, aquela revelada pelo “Reino do Pai”. Afinal, “o Reino de Deus está dentro de vós” Lc 17,21).
Portanto, a parábola deste domingo nos convida a fazer a travessia do exterior para o interior, restabelecendo o contato com nosso coração. Na verdade, a porta estreita conduz a um horizonte mais amplo; atravessá-la significa alcançar a harmonia conosco e fazer emergir o que é mais nobre em nós: recursos, dons, criatividade… Se nos contentarmos em seguir o modo de viver dos outros, não viveremos a verdade de nós mesmos. Nosso processo de humanização só poderá se ampliar se encontrarmos nossa porta pessoal e passarmos por ela.
Indubitavelmente, passar pela “porta estreita” significa uma experiência de “morte” àquilo que não somos para que possa viver o que somos. Só assim nossa vida, ao atravessar a porta, se expandirá.
E essa morte não acontece sem dor: ao ego lhe dói morrer a seus apegos, suas gratificações, suas necessidades, suas expectativas; ao ego lhe dói fazer uma “lipoaspiração” de suas gorduras; ao ego lhe dói deixar o que lhe dá uma sensação de segurança. Por isso, quando ele se sente frustrado, começam a aparecer sensações degradáveis e uma série de mecanismos de defesa entram em ação.
Com sua mensagem forte, Jesus nos convida a procurar e encontrar a chave para abrir a porta da casa do nosso “eu verdadeiro”, a entrar em contato com nosso coração, o lugar onde habitam os aspectos benéficos da nossa personalidade, as boas tendências, as qualidades positivas, os dons naturais, as riquezas do ser, as beatitudes originais, as aspirações de grande fôlego, as idéias-força, os dinamismos da vida… O “tesouro do ser”, ainda que pareça esquecido, permanece armazenado e pode tornar-se a força que orienta toda a vida, um lugar de fecundidade, de criatividade, fonte de renovação…
O símbolo da “porta” não se define em si como um espaço, não é um lugar, mas é o “limite” entre um lugar e outro, é o interstício entre dois espaços, é o que divide dois modos de ser e viver.
“Passar a porta” significa ir ao encontro do novo, do futuro, do diferente, do “fora do normal”…
O “outro lado” é um espaço não conhecido, é um lugar ainda não explorado.
Somos “seres de travessia”; é próprio do ser humano ousar, romper, ir além… Para isso é preciso arriscar para viver uma experiência transformadora, aproximando-nos do diferente: abrir portas de mundos que desconhecemos; viver situações às quais não estávamos acostumados; sentir coisas que nunca havíamos sentido; conhecer segredos que tornarão mais autêntica nossa vida…
Texto bíblico: Lc 13,22-30
Na oração: A porta estreita que atravessamos representa a nossa porta pessoal, que precisamos encontrar e atravessar, para deixar o rastro da nossa própria vida neste mundo. A porta espaçosa representa a que todos usam; a porta es-treita é a passagem original que Deus preparou para cada um de nós: ela aponta para nossa identidade única e é por ela que Deus acessa ao nosso interior. É nas fendas de nossos limites e fragilidades que Deus encontra mais facilidade para entrar em nosso coração e não pela porta da perfeição.
A “porta” da sua vida dá acesso ao novo e diferente ou está travada pelo medo e preconceito?